Ao acordar naquela manhã gelada de um inverno excepcionalmente mais frio do que a média dos últimos anos, não imaginava que aquele seria seu último dia. Achava certo que os incontáveis compromissos tidos pela frente faziam dele um sujeito indispensável, inclusive diante dos fatos que marcariam as próximas décadas na economia do país. Porém, ele não assistiria ao por do sol e antes que o dia terminasse, seu corpo já estaria depositado em um suntuoso caixão de madeira perolada.
A velocidade como tudo aconteceu não deixa de ser uma contradição tétrica. Como de costume, ele se produziu lentamente logo após deixar a cama. Cumpriu toda rotina que já fazia parte de sua existência: oração, meditação, café da manhã, atividade física, beijo na esposa, até logo para os filhos, encontro com o motorista já à sua espera na garagem do condomínio e seguir para o trabalho distante poucos quilômetros de casa.
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O café preto ralo, a mão relutante de quem percebe um problema de saúde ainda por ser descoberto, a angústia por saber que aquele seria mais um mês cujas contas não fechariam para que pudesse honrar todos os compromissos, o deixavam profundamente afetado. Tomou um ônibus em direção à empresa onde até aquele dia trabalhava e ao lá chegar após quase uma hora e meia de trajeto cortando aquele início de dia gelado, cumpriu todos os rituais: crachá passado pelo sensor da cancela, elevador em direção ao subsolo e saída pela garagem para um trajeto de poucos quilômetros até a casa do patrão.
Juntos sofreram um acidente fatal não muito longe daquela avenida que se tornara símbolo do mercado financeiro nacional. Um carro muito acima da velocidade provocou forte colisão com o carro onde estavam os dois passageiros distintos, não restando a mínima possibilidade de que dali alguém saísse com vida.
Nem do modelo mais atual do veículo importado, nem do modelo simples e velho do veículo fora de série dirigido por um homem que buscava dar fim à própria vida após concluir que sua existência não mais fazia sentido ao saber, no trabalho, que naquela madrugada congelante toda sua família havia perdido a vida em um incêndio criminoso – como se saberia anos depois – causado por milicianos a serviço de um grande empresário. Fato é que este mesmo empresário, tinha por aquele território da comunidade interesse em construir um suntuoso empreendimento dedicado ao setor financeiro, uma vez que aquele monte de casas, além de desvalorizar os imóveis mais próximos, servia como barreira à expansão de uma região que crescia aceleradamente.
Foi um calor intenso em uma madrugada polar que transformou um homem trabalhador e honesto em uma máquina assassina movida pela dor e pelo desespero. Quando os corpos foram recolhidos, três homens já não mais carregavam sonhos e desesperanças. Sem contar as vidas perdidas no incêndio. Quando aquele dia terminou, nenhum desses personagens voltou pra casa. A economia foi destaque no noticiário noturno, pois apresentava sinais de recuperação notadamente em razão das medidas adotadas pelo governo, cioso dos efeitos que o prolongamento da crise faria naquele ano em que as eleições seriam realizadas.
O acidente havia sido amplamente coberto pelo noticiário vespertino em cujas manchetes de tela exibia a notícia: “Empresário morre em grave acidente ocorrido na Avenida Rebouças”. A notícia destacava que nos próximos meses aquele empresário faria o anúncio do lançamento de um novo conjunto de edifícios comerciais que iria modernizar a região oeste da capital, uma vez que valorizaria o entorno do mercado financeiro concentrado dali a pouca distância.
O destacado empresário foi abatido pelas consequências da fúria pelo crescimento desumano. O motorista foi apenas citado como tal pelo apresentador ruidoso da emissora sem que ninguém pudesse saber seu nome. O suicida foi chamado de assassino. O incêndio foi noticiado como consequência da explosão de gás ocorrida em um dos barracos onde estava irregularmente instalado. A alta noite chegou!