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“Elucubrações”, por Marcelo Candido

Não sei quanto a você, mas comigo funciona mais ou menos assim: observo e deixo a criatividade se encarregar do restante desde que ela incida apenas em pessoas que certamente vejo pela primeira e única vez. Crio histórias a partir da observação aleatória. Faço isso quando estou esperando para ser atendido no consultório médico, na fila da loja para algum pagamento, na plataforma do trem metropolitano ou em qualquer outro lugar. Esperar é algo interessante. A gente faz o que acha que deve fazer enquanto espera e pronto.

Tenho uma lista de opções para esses não raros momentos: ler, ouvir música ou podcast e conversar com pessoas que demonstrem algum interesse em jogar conversa fora ou falar das coisas mais insondáveis do universo. Da lista, prefiro a leitura. Às vezes, dependendo do barulho ao redor, coloco música instrumental para me concentrar enquanto leio, e assim tirar melhor proveito disso. Ler é algo adorável e a quantidade de livros que tenho na fila de desejos é imensa, então procuro aproveitar ao máximo o tempo disponível para diminuí-la.

Tenho mais um hábito, menos nobre, é verdade, sobre o qual já dei pistas logo no início do texto: observar. Porém, não somente isso. Observar e elucubrar. Gosto de imaginar como seria aquela pessoa sentada à minha frente enquanto ela espera no consultório, por exemplo. Seria ela alguém gentil? Ela apreciaria as mesmas séries de minha preferência disponíveis nas plataformas de streaming? Gostaria de livros de urbanismo ou de ciência política? Então desencadeio uma conversa que jamais existirá a respeito desses assuntos até que a pessoa seja chamada para ser atendida e assim, despedindo-se, desaparece e reaparece apenas para dizer tchau e nunca mais ser vista por mim novamente.

O mesmo vale para os assentos de espera nos bancos, embora o lugar seja menos inspirador. E também para a espera do trem ou do metrô. Já imaginei situações em que a pessoa seja uma assassina de aluguel e esteja a caminho para encontrar a vítima. Puro “true crime”! Então penso como pode aquela pessoa tão aparentemente agradável estar indo tirar a vida de outra pessoa em troca e dinheiro!

Ou então me ocorre elucubrar sobre temas menos áridos como, por exemplo, percebendo o carinho oferecido por um tutor a um simpático cachorro, imaginar como seria a progenitora e o local de descanso do animalzinho. São pensamentos que vêm e que vão sem nenhum esforço, apenas seguem o fluxo e pronto. Forçar uma expressão mais profunda de uma realidade imaginada, em geral rende uma crônica ou uma reflexão sobre acontecimentos e desacontecimentos do cotidiano urbano, espaço que me rende mananciais de criação.

As cidades são verdadeiras produtoras de criatividade mental, bastando entregarmo-nos à sua vontade. Já vislumbrei amores, tremores e horrores também. Pensei perto e pensei longe. Encontrei-me e perdi-me em divagações que construíram as mais diferentes histórias inventadas. Quando li na obra “Sapiens – uma breve história da humanidade”, do historiador israelense Yuval Noah Harari, que uma das características mais relevantes para o avanço de nossa espécie na cadeia evolutiva dos hominídeos, que nos deu vantagens significativas de sobrevivência, foi a capacidade de inventar histórias, imediatamente pensei que caso o processo evolutivo alcance também nossa improvável imaterialidade eu posso ter sido um grande inventor de histórias que deram aos Homo Sapiens uma longa estrada de progresso intelectual e de fofoca.

Enfim, devo dizer que também senti apreço e asco frente a pessoas desconhecidas apenas por imaginar como seriam. Na prática creio que inverti muitos comportamentos mexendo com a pessoa desconhecida ali disponível, sem ela saber estar refém de minhas intentonas de construir-lhe características e identidades. A forma de se vestir oferece fortes indícios de personalidade ou realidade, assim como os assuntos que às vezes alcançam meus ouvidos.

Outro dia avistei um homem caminhando na Avenida Faria Lima, a mais farta em exibir sujeitos abjetos, e notei pela cara do cara, que ele deveria ser insuportável, daquele tipo que se sente a última bolacha recheada do pacote. Eis que ao chegar mais perto arrisquei dar-lhe um bom dia. Para minha não surpresa eis que a reação dele foi de me olhar e se virar sem retribuir o cumprimento. Minha reação foi sorrir para mim mesmo e comparar pessoas de diferentes lugares, e saber que quanto mais imponente economicamente é o lugar, melhor para saber que dali pouco se extrai de simpatia e sorrisos que não sejam motivados por interesses.

Por isso prefiro os lugares da minha infância, da minha cidade nos recantos mais humildes e das aparências mais singelas. As pessoas até podem viver a realidade mais difícil, mas não perdem a graça nem a esperança. Lutam, acreditam e sonham. Como tudo na vida, existem exceções, porém, tais lugares invertem o conteúdo da regra comparativamente ao habitat das elites econômicas.

Confirmam aquilo que Belchior já sabia: viver é melhor que sonhar. Eu só acrescentaria que às vezes, elucubrar também pode ser, porque alimenta o cérebro e nos dá vitalidade. E como dito pelo historiador acima citado, elucubrações favoreceram nossa espécie, desde que feitas com moderação, é claro!

(Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do HojeDiario.com)