O debate nacional em torno de temas de família ganhou holofotes com o Projeto de Lei (PL) 1.904, que também pode ser reconhecido como o “PL dos Estupradores”. O texto altera o Código Penal e estabelece de 6 a 20 anos de prisão para mulheres que, vítimas de estupro, fizeram aborto após 22 semanas de gestação – pena, aliás, que é o dobro da estabelecida para o próprio criminoso, para o estuprador – de 6 a 10 anos de reclusão. Para compreender como chegamos a esse absurdo, é preciso retomar a um passado longínquo.
No início da Idade Média, entre os séculos 10 e 11, as mulheres, antes submetidas ao jugo masculino, passaram a se emancipar. Com a apropriação do espaço público por parte delas, os homens, então, idealizaram o que, hoje, reconhecemos como violência contra a mulher.
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Da Idade Média para cá, estereótipos de gênero foram criados, na tentativa de desqualificar e inviabilizar a mulher em sua autonomia – de sorte que, aquelas que estivessem sozinhas nas ruas não eram, por exemplo, consideradas “honestas”, “de família”, e, portanto, podiam ter seus corpos apropriados por qualquer homem. Com o avanço do público feminino na sociedade, e com a conquista de espaços e de independência patrimonial e pessoal, cresceu ainda mais a intolerância, e veio a “caça às bruxas”.
Em pleno século 21, desde a Covid-19 e todos os resultados sociais e de saúde pública inerentes à pandemia, venho defendendo que corremos um sério risco de vivenciarmos uma nova Idade Média.
As mulheres, hoje, se sobressaem em eficiência, podendo, finalmente, conciliar a vida pessoal e profissional plena com a seara doméstica e familiar. Passam a almejar e a ocupar postos que antes eram impensáveis – incluindo os construídos pelos homens e para os homens. São o que quiserem, onde quiserem, caso queiram.
No combate ao avanço da autonomia da mulher, o público masculino usa as armas que tem e conhece – a força bruta. Os homens valem-se da ideia de que, pelo controle dos nossos corpos, podem, também, ter domínio de nossas mentes e anseios, mantendo-se, assim, o status quo de hierarquia, de “quem manda”, de “quem pode” e de “quem dita as regras”. Igualdade não é aceitável. Isonomia, parceira, união e respeito passam longe. “Manda quem pode, obedece (e se sujeita) quem tem juízo”, já dizia o ditado. E, pelo visto, perante a lei, o bom senso também se faz de rogado.
Eis que entra em pauta no Brasil o “Projeto dos Estupradores”, que pune vítimas mais do que seus próprios algozes, ao passo em que as equipara a homicidas. Mesmo em países que punem práticas abortivas – a fim de disciplinar a prática e combater qualquer tipo de banalização – essa repreensão é desvinculada da perigosa equiparação com o homicídio, sendo inserida no contexto da saúde pública e da ordem social.
Houvesse qualquer preocupação com a vítima de estupro e o produto da violência (vítimas indiretas), não estaríamos discutindo, neste momento, a criminalização de hipóteses de aborto legal no Brasil.
Mas o que esperar de um Congresso Nacional que lidera, apressadamente, a aprovação de um projeto de violência institucional contra meninas e mulheres, mas se recusa a conferir urgência ao Estatuto da Vítima, sob o argumento de que, não é o caso de se proporcionar proteção a grupos vulneráveis de nossa sociedade? Como deixar para o Poder Judiciário brasileiro analisar, casuisticamente, a especial proteção que deva ser dada a vítimas vulneráveis?
Infelizmente, esse é só o começo de uma era de restrição de direitos das mulheres, em que a crueldade humana se manifesta de sua forma mais explícita, e com direito ao apoio de vozes não só masculinas, mas, também, femininas.
A aprovação do Estatuto da Vítima é mais que urgente em nosso País! Política pública não se faz com demagogia. Nem invertendo os papéis. Mas, sim, com prevenção, planejamento e defesa das vítimas diretas, indiretas e coletivas. Trata-se, afinal, da salvaguarda da sociedade como um todo, e de parte de nossa história.
A punição não deve, jamais, ser descartada em caso comprovado, em questão de exageros e de desvirtuação do objeto. Aborto é assunto sério, afinal, e não menos importante e relevante do que as sequelas deixadas por um estupro – muitos, diga-se de passagem, cometidos dentro do lar da vítima, por pessoa próxima.
Em suma, não podemos permitir que o Brasil seja palco da revitimização de milhares de meninas e de mulheres, vilipendiadas na alma, cujo único pecado, pelo visto, é a própria existência.
Celeste Leite dos Santos é presidente do Instituto Brasileiro de Atenção Integral à Vítima (Pró-Vítima); promotora de Justiça em Último Grau do Colégio Recursal do Ministério Público (MP) de São Paulo; doutora em Direito Civil; mestre em Direito Penal; especialista em Interesses Difusos e Coletivos; e idealizadora do Estatuto da Vítima, da Lei de Importunação Sexual e do Projeto Estadual 130/2016 de Igualdade Plena de Homens e Mulheres.