Quando a notícia da morte de uma pessoa amiga é dada, vem com ela uma vasta quantidade de lembranças que, do contrário, continuariam guardadas nalgum recanto de nossa memória. Uma velha amiga, sobre quem não me lembro da última vez em que pensei nela, tão distante nossa convivência ficou no tempo, morreu na semana passada.
A notícia fez emergir lembranças tão emocionantes, parecendo que elas apenas esperavam o momento para iluminar um istmo de minha vida que já vai em estado avançado na conta dos anos. Como a do tempo em que as crianças faziam das ruas do bairro templos de brincadeiras, traquinagens, espiritualidades, romances e outras tantas facetas desta fase do universo da vida. Também a de um tempo que se passava lentamente, sem ansiedade diante do porvir. Ademais, momentos da idade mais tenra em que se era dado o direito de sentir, sem saber, a verdade do estado de impermanência.
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O futuro que esperasse sumir o suor das brincadeiras de corrida, do jogo de futebol, e mesmo o sangue derramado pelos socos que eram trocados nas ruas para fazer valer sabe-se lá o quê. De tudo se tomava emprestado. Faltava sal para terminar o almoço? A mercearia mais próxima era a despensa do vizinho. E quando a este faltasse o açúcar para preparar o bolo? Era do armário do outrora pedinte que ele saía.
Havia muito escambo na vizinhança, o que permitia forte ligação de amizade e respeito. A rua era o lugar dos encontros e dos desencontros. Às vezes chegava a notícia de uma gravidez inesperada, como se ela surgisse por força do acaso; outrossim de um casamento mal-ajambrado; também de alguém que fora alvejado e morto por uma bala de revolver. As idas e vindas da escola faziam a rua ficar repleta de vidas em construção, sobre as quais seria impossível imaginar o destino.
Foram tempos sagrados e profanos. Felizes e infelizes. E foi o tempo que fez de nós quem somos. Oxalá seja possível a cada pessoa abrir espontaneamente, de vez em quando, a caixa da memória e resgatar momentos do passado que dão sentido ao presente. Sem descortinar o todo da vida não se saberá compreender o quanto há de riqueza imaterial conquistada ao longo dos anos.
Grato por tudo, querida Marina.
(Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do HojeDiário.com)