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“Batedor de laje”, por Marcelo Candido

A expressão “bater uma laje” corresponde a um jeito de descrever um serviço que simboliza o ápice da construção de uma casa, principalmente, nas periferias das cidades metropolitanas brasileiras. Dependendo da região ou do período histórico ela pode ter outras variações linguísticas, mas convergem para o mesmo significado.

Encher a laje é uma delas. Porém, pelo menos a este “escrevinhador”, é mais familiar “bater uma laje”, pois é esta expressão que me vem à lembrança desde os tempos de infância e das colaborações em que acabava inserido nos modestos canteiros de obras. Aliás, acredito que esta forma expressa melhor o esforço despendido na nobre tarefa periférica.

Um trabalhador, antes chamado “chefe de família” – termo semanticamente superado pela não distinção de gênero hoje melhor reconhecida na realidade em que vivem as famílias –, tinha o desafio de construir sua própria casa a fim de abrigar o cônjuge e toda a prole. Para isso, o trabalho praticamente se desenvolvia nos finais de semana, pois durante os dias úteis esse trabalhador precisava cumprir com as obrigações de um assalariado padrão-médio-nacional.

Esse modelo de produção habitacional, em decorrência, impunha um período de trabalho muito prolongado até que a casa pudesse ser ocupada. Como para confirmar a existência das regras, claro, sempre houve exceções. Então, pela regra, o homem trabalhava sozinho, ou contava com a ajuda de um ou outro amigo, ou mesmo um filho ou outro em condições físicas adequadas. Após tanto esforço chegava o momento de “bater a laje” da casa, ocasião em que os vizinhos e muitos outros amigos e parentes eram chamados à empreitada.

Muito embora o ato de entrar na casa para morar não significava que ela estivesse pronta, o fato é que com a laje já feita, a depender da situação financeira e da pressa de se sair da condição de locatárias, muitas famílias já caíam pra dentro e doravante se tornavam as habitantes do local. É comum encontrar testemunhos de pessoas que viram por dentro a casa ser concluída de forma arrastada enquanto nela já moravam. Eu mesmo conto anos nesta situação, pois meu pai foi um construtor destes de final de semana, enquanto reservava os dias úteis para o ofício de torneiro mecânico nas fábricas em que trabalhou.

Para compensar os trabalhos voluntários por ocasião do enchimento da laje, geralmente o dono da casa oferecia uma feijoada ou um churrasco para o festejo da tropa assim que terminado o serviço. Se alguém tocasse um instrumento musical, já constituía um item a mais para a festa que poderia alcançar o status de pagode. De minha parte são fartas as lembranças das casas que pude assistir ou mesmo nelas trabalhar voluntariamente “batendo laje”, principalmente na adolescência.

Mas algo que sempre me intrigou foi a difusão da autoria coletiva da obra, quando na verdade ela era fruto quase que solitário de um escultor trabalhador a quem não restava alternativa senão colocar a mão na massa desde o início, sendo que a fase da laje correspondia a um percentual menor da obra vista como um todo, e o trabalho coletivo nesta etapa representava muito da amizade cultivada entre as personagens da história real.

Eram poucos os casos de construtores contratados. A ironia de tudo isso é que muitos pedreiros e serventes trabalhavam na construção civil e acumulavam a experiência da autoconstrução quando se tratava de seu próprio imóvel. Assim as periferias foram sendo esculpidas e hoje se apresentam no desenho urbano das cidades como os lugares clássicos reservados à grande massa de trabalhadores. Se a casa atendia ao lugar da moradia, o entorno reclamava – e ainda reclama – pelas melhorias devidas a quem tem o direito à cidade.

O curioso é que todas essas reminiscências me trazem um elemento de comparação que decorre do fato de que a vida revela, metaforicamente, a presença de alguns “batedores de laje” se exibindo entre nós, pois assim como no caso de alguns voluntários que chegam nessa fase da obra e se apresentam como responsáveis por construir a casa inteira, deixando de reconhecer e valorizar o árduo trabalho de quem se encarregou do alicerce às paredes, há quem se encaixe na vida pública como mero “batedor de laje”, pois nada projetou, pouco construiu, mas, no limite, diz ter feito muitas casas espalhadas por aí.

Haja feijoada ou churrasco para tanta desfaçatez, e dá-lhe caipirinha a quem acredita que obra se começa de cima pra baixo, pois quem pensa assim deve ter excedido na bebida! Saravá às trabalhadoras e aos trabalhadores, os reais construtores das casas e grandes responsáveis por garantirem o conforto às vidas nelas abrigadas.

(Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do HojeDiario.com)