Toda edição de Copa do Mundo de futebol tem suas polêmicas, porém, neste ano, a do Qatar acrescenta elementos novos que não podem passar despercebidos ou serem ignorados como se nada significassem para o conjunto da sociedade planetária em sua máxima diversidade.
Mesmo que os altos dirigentes da FIFA®, investigados por supostas irregularidades na campanha que levou à eleição do país árabe para sediar a Copa de 2022, tenham sido poupados de forma absurda e inexplicável de quaisquer consequências legais, não significa que elas, as irregularidades, tenham deixado de acontecer, uma vez que malfeitos foram encontrados e penas foram aplicadas em pessoas dos médios e baixos escalões da entidade, além do afastamento de poderosos dirigentes de suas funções administrativas, como demonstram os resultados dos processos conduzidos pela própria entidade máxima do futebol mundial, corroborados por investigações conduzidas pelas autoridades policiais e judiciárias dos Estados Unidos.
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Não bastassem esses problemas seminais, agrava o fato de que, uma vez escolhido, o país passou a ser vitrine aos olhos de todo o mundo, e isso o deixou exposto ao escrutínio acerca de vários eventos que caracterizam diversas políticas de violação dos direitos humanos e trabalhistas há muito consagrados em todo o planeta. Dentre as graves denúncias ao longo dos preparativos para a realização da Copa, ressaltam mais de 6,5 mil vidas perdidas e outros muitos e gravíssimos acidentes na execução das obras dos estádios e de outras correlatas. Acrescenta-se a isso a retenção dos passaportes de inúmeros trabalhadores imigrantes para que estes não pudessem deixar o país em razão da aridez dos ambientes de trabalho e por serem realizados em condições análogas à escravidão em não poucos casos.
Realizar a Copa do Mundo de futebol faz parte das estratégias do Qatar em se abrir para o resto do mundo a fim de explorar plenamente suas reservas de petróleo e gás, entre outros objetivos ligados ao comércio internacional e ao posicionamento do país na geopolítica do Oriente Médio. Para tanto, o Emir Tamim bin Hamad al-Thani não poupou esforços. Isso custou decerto algumas medidas de flexibilização das normas locais, sem, contudo, fazer o país abdicar de determinadas condutas que pudessem banir ações persecutórias contra pessoas LGBTQIAP+, por exemplo, determinando penas severas, como possíveis sentenças de morte em casos de homossexualidade, que lá é proibido por lei.
Organismos internacionais denunciam inúmeros casos de violência e opressão contra as mulheres, às quais são negados direitos essenciais no sentido de lhes assegurar autonomia dentro e fora de casa, pois a rigor são tuteladas pelos homens. Para além das questões cujas bases possam estar supostamente fundamentadas no islamismo – e aqui cabe toda a atenção a respeito de muitas distorções praticadas ao sabor dos interesses de ocasião ao redor de cânones religiosos -, é fato que a não laicidade do Estado exclui o direito de qualquer indivíduo de se assegurar de valores diferentes daqueles suportados nas leis que estabelecem os costumes internos do país.
A Sharia, como sabemos, constitui as leis sagradas do islamismo e são adotadas como parte do sistema jurídico de alguns países muçulmanos e seu fundamento advém do Alcorão e dos registros de falas e condutas de seu profeta fundador, além ainda das fatwas que são frutos dos pronunciamentos legais daqueles que estudam o islã para efeito de construção das bases que orientam a vida da comunidade muçulmana.
Sabemos o quanto existe de preconceito contra esta comunidade, e também que casos como os que trouxemos aqui são passíveis de reforçar esses mesmos preconceitos, se não analisados à luz de diferentes variáveis. Portanto, a realização da Copa do Mundo no Qatar aponta para a necessidade, principalmente por parte dos países ocidentais, de entenderem as muitas complexidades existentes na forma como a humanidade se realiza em seu vasto universo cultural, social, político e religioso. Entretanto, proteger os direitos humanos também é uma condição de respeito a valores eticamente consolidados ao redor do mundo, como são o direito à vida, a liberdade e à religiosidade.
Como é possível perceber, as reflexões, ora apresentadas, também buscam compreender a grandeza da realização do maior evento esportivo do planeta sob a ótica da política e da autodeterminação dos povos. Uma Copa do Mundo está longe de ser um evento insípido, inodoro e incolor como se água fosse, por ser ele carregado das mais diferentes variáveis políticas que podemos nem sequer notar, mas que ocupam não apenas os quadrantes do campo de futebol, mas todas as partes que envolvem o maior evento esportivo que o mundo já conheceu. Às vezes, o futebol pode ser apenas um detalhe apaixonante.
(Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do HojeDiario.com)