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“Da bebida falsificada ao remédio falsificado: a fragilidade da cadeia de confiança na saúde”, por Doutor Jorge Abissamra Filho

Na última semana, o país se chocou com a notícia de dezenas de casos de intoxicação por metanol em bebidas adulteradas. Pessoas comuns, em momentos de lazer, perderam a visão, a consciência e, em alguns casos, a vida — vítimas de uma fraude que começou no comércio informal e terminou em uma tragédia de saúde pública.
Mas esse episódio vai muito além de uma garrafa clandestina. Ele revela algo mais profundo: a fragilidade da confiança sanitária no Brasil. Quando uma simples dose pode matar, não é apenas a bebida que está contaminada — é todo um sistema que falhou em proteger o cidadão.

A lógica é a mesma que vemos na outra ponta da cadeia: os medicamentos falsificados.
Assim como o álcool adulterado se infiltra em mercados paralelos, remédios sem registro, manipulados sem controle ou comprados em sites duvidosos se espalham silenciosamente pelo país. A diferença é que, no lugar da embriaguez, a vítima busca cura — e acaba recebendo veneno.

A Organização Mundial da Saúde estima que 1 em cada 10 medicamentos em países em desenvolvimento é falsificado ou de qualidade inferior. No Brasil, a Anvisa apreende toneladas de cápsulas e frascos irregulares todos os anos — muitos contendo substâncias tóxicas, sem princípio ativo, ou fabricados em condições insalubres. Ainda assim, o problema segue crescendo, alimentado por três fatores previsíveis: a informalidade, o preço e a desinformação.

A informalidade é o terreno fértil da fraude. Mercados paralelos prosperam onde o Estado falha em fiscalizar. O preço, por sua vez, é o anzol: quanto mais caro o tratamento legítimo, maior o incentivo para comprar o “igual, só que mais barato”. E a desinformação fecha o ciclo, fazendo com que pessoas acreditem em promessas milagrosas vendidas por influenciadores e sites duvidosos.

Por trás dessas tragédias — sejam causadas por metanol ou por medicamentos falsos — existe uma mesma verdade incômoda: a ausência de rastreabilidade real na saúde brasileira.
Hoje, ainda é possível vender, transportar e armazenar produtos farmacêuticos sem controle digital eficiente de origem, validade e destino. O país avança lentamente na implementação do Sistema nacional de Controle de Medicamentos (SNCM), mas a falta de integração entre indústria, distribuidoras e governo torna o processo vulnerável.

No setor privado, especialmente nas operadoras e redes de distribuição de medicamentos de alto custo, esse desafio é diário. Garantir que cada caixa chegue ao paciente certa, íntegra e dentro do prazo é tão importante quanto o próprio princípio ativo.
Em oncologia, por exemplo, um erro de origem pode custar vidas e milhões de reais em terapias perdidas. Por isso, a rastreabilidade não é um detalhe técnico: é um compromisso ético e clínico.

Quando alguém compra um destilado sem procedência, assume um risco visível. Mas quando um paciente recebe um medicamento de origem duvidosa, o risco é invisível — e muito mais cruel.
Por trás de um frasco falsificado pode haver ausência de controle microbiológico, diluição irregular, transporte inadequado, ou simplesmente nada do que promete. É o mesmo veneno, disfarçado de tratamento.

A lição do metanol, portanto, é mais ampla do que parece: a saúde pública começa na confiança. E confiança se constrói com rastreabilidade, fiscalização e transparência.
Precisamos entender que saúde não é apenas remédio e hospital — é também controle, responsabilidade e ética em cada elo da cadeia.

Se uma bebida adulterada pode cegar um homem, um sistema sem controle pode cegar uma nação inteira diante de seus próprios riscos.
E é isso que precisamos evitar: que o Brasil se acostume a beber veneno achando que é solução.

(Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal HojeDiario.com).