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“Gado”, por Marcelo Candido

Em meio à efervescência política dos anos de chumbo no Brasil, Geraldo Vandré e Théo de Barros compuseram “Disparada” e a canção tornou-se popularmente conhecida na interpretação de Jair Rodrigues no II Festival da Música Popular Brasileira em 1966. Ela foi, inclusive, adotada como expressão da resistência à ditadura militar.

Em um dos trechos mais pungentes é dito de forma assertiva que “gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente.” Naquilo que é possível associar à luz daquele momento, a canção ressalta que na existência humana não há comparação entre gado e gente, pois gente tem outro lugar na vida, muito diferente de um animal que pode ser abatido como mercadoria e transformado em produtos de diferentes formas e finalidades, embora restem muitas discordâncias.

Nunca gostei de atribuir a qualquer pessoa adjetivo que a diminui em sua essência, mais ainda em se tratando de qualificar grupo de pessoas. Atitudes assim diminuem a qualidade do debate. Por outro lado, também sei o quanto é dolorido ser alvo de tratamento pejorativo, nascido muitas vezes do mais profundo preconceito, seja ele de raça ou de classe. Daí a razão para não se encontrar de minha parte a utilização dessas formas de tratamento.

No atual debate político que ocorre no Brasil, do que mais me ressinto, entretanto, é a aceitação acrítica de qualquer absurdo desde que sirva de argumentação para garantir a preponderância de uma opinião. Com isso, acompanho estarrecido que o que vale, muitas vezes, não é mais a verdade e sim a narrativa sobre o que seria a verdade, dando significado a uma expressão que, apesar de nova, traz essencialmente a brutalidade do desprezo à realidade, ou seja, a “pós-verdade”.

Esta expressão eleva à “verdade” não o fato, mas o desejo de que uma realidade paralela se imponha. E os seguidores dessas narrativas estupidas, desmontáveis sob qualquer argumento lógico e ético, comportam-se como se fossem gados no meio de uma boiada que segue na direção do precipício, carregando para a morte a verdade, a democracia e o avanço do processo civilizatório em um só movimento.

Para que no futuro ninguém se veja obrigado a se reconciliar com a história, tendo que rever sua participação neste período sombrio em que vivemos, creio que o mais inteligente seria colocar-se à frente de seu tempo e evitar ser chamado à responsabilidade pelos acontecimentos que ora sangram a alma brasileira. “Se você não concordar, não posso me desculpar”, pois a “morte, o destino, tudo estava fora do lugar e eu vivo pra consertar”.

(Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do HojeDiário.com)