Estou gravando para o meu Instagram uma série sobre a minha trajetória com as drogas. Serão 4 temporadas e a primeira que se chama ‘As drogas e eu’ é constituída por 4 episódios. Ontem gravei o episódio da segunda temporada que se chama ‘As pedras das ruas’. Na coluna de hoje, irei dividir com vocês a reflexão que realizo sobre tal episódio.
Antes de chegar ao núcleo do consumo do crack em situação de rua na Cracolândia, eu rompi com todos os laços morais, de segurança, afeto e proteção que eu nutria comigo. A fissura pelo consumo abusivo do crack me fez romper com valores herdados de meus pais, abandonar o trabalho, os amigos e minha casa. A fissura pelo crack foi maior e tão intensa que diante da dependência, me vi em situação de rua.
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Fui para as ruas da Cracolândia motivado tão somente pelo consumo abusivo do crack. Porém, nas ruas, a vida é nua, a vida é uma não vida. Desse modo, tornei-me socialmente invisível.
Nas ruas já não tinha mais a proteção, o lar, os amigos, a família, o trabalho, e diante da ausência absoluta de valores, me entreguei na profundidade do uso abusivo do crack, fiz coisas absurdas que jamais imaginei que faria.
As pedras das ruas são muito caras e não estou falando do preço com o traficante. Eu me refiro do sacrifício custoso no ato de largar tudo para viver em situação de rua em face da dependência química.
As pedras das ruas são mais caras porque eu e todos os usuários precisamos de dispositivos para viver a vida nua, a vida sem vida, sem humanidade. Sem uma cama, um teto, alimentação, higiene pessoal, autocuidado, proteção da família, recursos econômicos provenientes do trabalho, eu e todos os usuários precisamos lidar com a capacidade de transformar qualquer objeto “encontrado” nas ruas em crack. Eu transformava qualquer coisa que encontrava nas ruas em droga, sejam cabos achados nas ruas, dinheiro proveniente de roubo ou mendicâncias, roupas ganhadas… Tudo, absolutamente tudo era reduzido as pedras… das ruas.
Precisei descobrir os lugares que ofereciam proteção para eu passar a noite, cobertor para me cobrir nas noites frias, papelão para transformar em cama e restos de comida para alimentar a fome.
Essa situação de uma vida não humana foi motivada pela força da dependência com o crack. Tornei-me invisível socialmente, minha presença incomodava aqueles que caminhavam pela cidade e qualquer passo que eu dava era motivado por medo e profunda desconfiança.
Essas são as razões que tornam as pedras das ruas mais caras, pois nas ruas, eu e os demais usuários vivemos em bando, e na força do bando, partia para a guerra cotidiana para obter mais pedras de crack e alimentar minha dependência.
Em bando, partia para a guerra motivado por um único propósito: encontrar mecanismos de subsidiar o consumo do crack. Quando tais mecanismos são encontrados, na alegoria da guerra, o espólio é dividido, cada um encontra o seu lugar para que sozinho consuma sua pedra e depois, quando a fissura bate novamente, o bando se junta outra vez para uma guerra sem fim.
As pedras das ruas são mais caras porque me transformei em um zumbi, em não humano, que vivia em estado permanente de tensão, ora tensionado pela desconfiança, ora pela fissura, ora pela incapacidade de encontrar sentido de continuar com a minha vida; em consequência disso, na loucura da viagem da pedra, das pedras das ruas, procurei mecanismos diversos para dar fim em minha vida.
As pedras das ruas são caras. Muito caras, mas, neste ambiente de hostilidade, de uma guerra particular para manter meu uso abusivo com o crack, bolsas de esperanças se abriram a partir da atuação de profissionais pautados pelo compromisso ético em defesa da vida e/ou por sujeitos motivados por vocação religiosa, tais como o Pastor Babão, Pastor Ricca, Padre Júlio Lancelotti, entre outros.
Foi nas ruas, em busca das pedras das ruas que a solidariedade dessas pessoas atravessou a minha humanidade e me afetou a ponto de eu conseguir encontrar esperança, paz e fé em minha própria recuperação, sair das ruas e de uma vez por todas, abandonar as pedras das ruas e o consumo com as drogas.
Se você tem interesse de conhecer esse episódio e os demais, acompanhe em meu Instagram e assista a série: @felixromanos.
(Este texto não reflete, necessariamente, a opinião de HojeDiario.com)