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“Pobreza atávica”, por Marcelo Candido

Assisti a cena de um aparente conflito entre quem parecia ser mãe e filha. Tal cena alcançou os meus olhos por não mais do que 15 segundos enquanto eu reduzia a velocidade do carro para parar logo à frente em um semáforo. As duas personagens sobre quem aqui vou me concentrar caminhavam pela calçada, onde a mulher acelerava irritada enquanto a criança seguia atrás chorando como quem foi contrariada ou mesmo agredida.

Quando esverdeou o semáforo ainda pude avistar pelo retrovisor do carro as duas desaparecerem do alcance dos meus olhos, algo que me provocou a refletir por meio da construção especulativa de uma situação que pode se considerar inventada, mas que acontece todos os dias. Essa construção cabe ser desconstruída à luz dos fatos, posto não haver nada daqui para frente neste devaneio que seja baseado em uma história real, e sim apenas os frutos das minhas inquietantes interpretações com base nas conexões dos cenários cotidianos.

Sabemos da infância como o período mais importante da vida de qualquer exemplar de nossa rara e excepcional espécie no universo. É durante tal período que se constitui muito da personalidade que alguém levará para o resto da vida, podendo influenciar todo um ecossistema social de forma positiva ou negativa. A imagem da suposta mãe carregava uma história de dor e sofrimento tal como a de inúmeras mulheres desprovidas de relações de amor e afeto, trafegando sempre pelas vias de uma sociedade cruel e excludente. Caminhos de intolerância, de desrespeito, de violência, de desespero e de toda sorte de abusos.

As vestes da mãe denunciavam uma pobreza atávica e, de resto, pouca capacidade de autocuidado diante das privações que são impostas por essa condição social. Ela era uma pessoa dura, impassível diante do caminhar sofrido da criança. Parecia haver ali não laços de amor e afeto e sim nós apertados de impaciência, tristeza e tragédia.

A filha tentava alcançar nas mãos da mãe uma boneca velha, despida e despenteada, objeto de uma doação feita por alguém que acreditou que a pobreza daquelas pessoas requeria não o respeito e a empatia, e sim, o ultraje praticado por quem faz uma doação assim como quem joga na lata do lixo algo dispensável e sem valor. A boneca não era mais um brinquedo e sim a materialização da mesma miséria que ela iria alcançar junto àquela família desestruturada economicamente!

Formavam todas elas – mãe, filha e boneca – um ciclo inescapável de privações que se retroalimentam e mantém pessoas às margens da sociedade, desesperançadas em alcançar um centro de garantias de direitos constitucionais, humanos e espirituais. Uma criança que minutos antes pedia esmolas a quem lhe atravessasse o caminho, treinada que era para arranjar algum recurso à sua família, sendo esta certamente abrigada na imensidão do espaço de quem tem o entorno desprotegido por paredes capazes de dar segurança contra as intempéries naturais e contra as truculências impostas pela vida miserável.

Se a mãe já demonstrava advir das consequências da exploração capitalista que torna humanos em animais de aparência irracional, quase nada ela oferecia à filha para que esta pudesse quebrar aquele ciclo. O que esperar se não o quase inevitável das tragédias que são passadas de geração a geração? O choro daquela criança expressa o de muitas outras espalhadas pelos mais diferentes territórios do país, motivadas por razões diversas, porém não menos dramáticas.

São ignoradas enquanto os carros permitem que elas sejam assistidas como que através de telas – as nossas janelas – que guardam distância da crua e dura vida real de quem parece condenada ao abandono, sem assistência alguma. As pessoas não morrem de fome, tampouco por força das doenças e de tantas debilidades causadas pela falta de tudo. Elas adoecem e morrem como vitimas do abandono a que são relegadas pela atitude de quem não reparte. Ou pior, pela atitude de quem concentra!

Se existem culpados, eles são todos nós, individual e coletivamente, vitimas ou não. É o conceito falido de um sistema econômico que majoritariamente distribui a miséria e retém a riqueza nas mãos de quem secularmente encontra os meios de controlar o Estado através do mercado. Processo de acumulação como objetivo em si mesmo, indiferente ao fato de que as sobras acabam por apodrecer trancafiadas nos cofres da ganância.

A cena que atropelou meus pensamentos doeu e deixou mais uma vez expostas as fraturas da desigualdade social e não renovou em mim as esperanças de que aquela criança pudesse acelerar rumo a uma outra vida, de dignidade e acolhimento amoroso. Pelo contrario, me deu a sensação de que enquanto tantas crianças viverem sob o abandono, a ninguém será dado o direito à felicidade.

Tomara que no caso concreto as imagens mentais construídas pela minha pouca fé na sociedade contemporânea seja um equívoco de interpretação, mas não é o que me pareceu, infelizmente. O ciclo da pobreza exige ser quebrado não pela falácia da meritocracia e sim pela ação fraterna baseada no sentimento de coletividade que deve aglutinar capacidades à nossa espécie antes que ela desapareça deixando um rastro paradoxal de desumanidade.

(Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do HojeDiario.com)