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“Torturado e torturador”, por Marcelo Candido

No verão de 1980 a editora L&PM publicou um artigo do jornalista e escritor Luís Fernando Veríssimo, no segundo volume de sua revista “Oitenta”. O autor deu à publicação o título “Condomínio”, que poderia, em princípio, nos remeter a um tema banal. No entanto, ele descrevia o desenlace de um encontro dramático entre dois homens no interior do elevador do prédio onde moravam. Um havia sido torturado pela ditadura militar brasileira. O outro, quem perpetrara contra o primeiro as crueldades inomináveis da tortura.

Ao entrar em casa, aquele que havia sido torturado no passado ainda soube, por meio de sua esposa, que haveria naquela noite a primeira reunião dos condôminos do novo e elegante edifício. Uma dúvida pairava na cabeça de João, o torturado: seria mesmo aquele homem o torturador? Alguém que o havia submetido a dores indescritíveis e a um terror que até hoje lhe tirava a paz? E que ainda o fazia acordar no meio da noite aos prantos quando as lembranças da prisão política da ditadura militar o assaltavam?

Até que na reunião do condomínio se encontraram novamente. Sérgio, era o nome do torturador. Entre os assuntos que afligiam os moradores do condomínio, o mais relevante era em relação a segurança coletiva. A vizinhança parecia disposta a atacar violentamente os moradores do prédio, contra os quais, segundo eles, restava uma inveja de classe. Ao longo da reunião todo tipo de preconceito era desferido contra aquela vizinhança que, a rigor, não oferecia a mais modesta ameaça, não fosse a paranoia daquela classe emergente. A quem lutara contra a ditadura pouco sobrava de atenção ao que era discutido ali, senão sua preocupação em saber se o torturador se lembrava dele.

Então soube que o torturador não apenas se lembrava, mas também de detalhes que ele próprio, o torturado, havia apagado da memória. O filho de João tinha o nome de Vladimir. De Sérgio, Serginho. As duas crianças brincavam juntas e eram melhores amigas. Sérgio agia com indiferença, como se o que fizera no passado fosse algo apenas a ser lembrado como o cumprimento fiel de um papel perante o sistema. João, porém, sentia que os efeitos da tortura a que foi submetido sem que delatasse ninguém, ainda poderiam lhe causar danos tão significativos, que se não lhe afetavam mais a carne, agora o atingiam na alma, sem saber se aquela sessão pudesse um dia terminar.

(Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do HojeDiário.com)