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“Petrópolis e Kiev”, por Marcelo Candido

A chuva veio muito forte, confesso que até me assustei. Como homem calejado que sou, logo conclui que aquela seria como todas as outras que aconteceram nessas quase três décadas em que a mim restou pendurar a casa sobre um morro que oferecia uma das vistas mais deslumbrantes de uma serra que até hoje guarda a história do reino que já fomos um dia. Infelizmente, desta vez ela veio com tanta fúria que parecia até castigo! Será mesmo que meus pecados serão pagos sob a terra?

Aprendi na igreja que os pecadores seriam castigados sob o fogo, desprovidos de qualquer esperança. O céu seria o lugar daqueles que serviram a Deus conforme os ensinamentos de Jesus. Um deslizamento me arrancou de forma repentina o céu, e sob a terra fui arrastado com os poucos bens que acumulei na vida. O barulho era intenso, ensurdecedor. O ar foi desaparecendo e a respiração foi ficando mais difícil a cada segundo. Será essa a sensação dos que morrem sufocados pelo covid?

De repente, houve uma parada brusca. Já não havia luz, resistência ou capacidade de sair dali. Pareceu que tudo estava perdido. E meus filhos? Minha mulher? Meus animais? Estariam todos como eu, sufocados sob a terra? Não sei. Houve um longo e angustiante silêncio até que voltei a enxergar novamente. Percebi um esforço monumental de muita gente lutando para retirar de sob os escombros pessoas que ainda pudessem lançar algum sinal de vida, ou mesmo ser encontradas sem vida. Eu não me abalava, apenas observava. Não havia tristeza, tampouco resignação, apenas um silêncio que eu não sabia que existia. Era estranho…

Soube que foram muitos os dias de luta para retirar de sob a lama, os corpos já sem vida. Não eram mais seres humanos, apenas a carne que um dia albergou a vida. Eram histórias que não mais seguiriam adiante. Ficaram pra trás, na calamidade de uma proteção que jamais ninguém garantiu. Por que tanta injustiça, tanta dor e sofrimento? Logo senti a presença de alguém que me dizia que uma guerra havia começado no leste europeu, cujas batalhas já haviam ceifado vidas e causado pavor, fugas e muito desespero. Era esse o único assunto dos viventes.

Enquanto os corpos ainda eram retirados para um sepultamento digno, ocorreu-me perguntar por que eu ainda observava impassível tudo aquilo. E como alguém foi capaz de me dar notícia da guerra como se não parecesse uma presença física, mas idílica? Foi quando abandonei o torpor e me recompus frente a uma realidade ulterior. Não mais como antes, porém, ainda assim, pleno de confiança na humanidade, para que as próximas pessoas que pousassem suas esperanças neste planeta pudessem evitar que acontecimentos como os de Petrópolis e Kiev se tornassem apenas a razão da vergonha de nossa espécie. Parti anônimo, como fui ao longo de toda a vida, esperando não encontrar minha família. Pelo menos por enquanto!

(Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do HojeDiario.com)